Capítulo 6: Nossa chegada a Lençóis revelou duas faces do turismo: a que vende paisagens e a que compartilha humanidade

Por Nazareth Reales

Foto: Nazareth Reales

Depois de uma noite acampando a dois metros da BR-242, com o rugido constante dos caminhões ecoando em nossas cabeças como uma trilha sonora impossível de esquecer, amanhecemos com a tranquilidade de ter teto, acesso a água, banheiro, chuveiro e um delicioso café da manhã. Tudo graças a Josenildo Pinheiro, dono de um restaurante em Amparo. Pode parecer um gesto mínimo, mas para quem vive na estrada, um banho com água corrente é um luxo e um respiro, além de um ato de empatia e humanidade.

Josenildo Pinheiro – Foto: Nazareth Reales

Naquela manhã, chegou a esse mesmo restaurante Jesus Esteban, dono do caminhão que nos daria uma “carona” de quase 60 quilômetros. Esteban apareceu com a disposição e o espaço necessários para nos ajudar a evitar um dos trechos mais perigosos da BR-242, marcado por buracos, más condições da via e veículos em alta velocidade.

Jesus Esteban – Foto: Nazareth Reales

Descemos nossa Casaenbici no entroncamento da estrada para Utinga e, sem pensar duas vezes, pedalamos até o povoado de Tanquinho de Lençóis, onde acampamos por dois dias às margens do rio Santo Antônio, em um lugar muito tranquilo, sem internet nem energia elétrica, imersos em natureza pura, antes de seguir para nosso próximo destino: Lençóis, a cidade mais conhecida da Chapada Diamantina.

Casaenbici em Tanquinho de Lençóis – Foto: Nazareth Reales

Íamos cheios de expectativa. Acreditávamos que, por ser um destino turístico reconhecido, encontraríamos apoio para descansar e deixar nosso equipamento em segurança enquanto explorávamos as paisagens. No entanto, a realidade nos atingiu: fomos até a Prefeitura de Lençóis e não encontramos ninguém disposto a nos ouvir; nem mesmo a própria secretária de turismo. A resposta foi clara: não poderíamos montar acampamento em nenhum parque ou área verde próxima ao rio, pois seríamos retirados pela guarda municipal. A única opção disponível era pagar por campings ou pousadas, todas fora do nosso orçamento.

Em Lençóis, o turismo tem um preço alto, mesmo para apreciar cenários naturais. O desenvolvimento turístico pode trazer progresso, mas também pode afastar a humanidade.

Gaby, cicloviajante do Rio Grande do Sul – Foto: Nazareth Reales

Quando tudo parecia perdido, apareceu Gaby, cicloviajante do Rio Grande do Sul e seguidora nas redes sociais, que nos abriu as portas de sua casa. Não tinha muito espaço, mas tinha um coração enorme, lembrando o que tantas vezes ela mesma havia recebido em sua viagem pelo Brasil. Também conhecemos Geulia, mãe de Alex, amigo de Itaparica. Geulia, com mais de 70 anos, escritora e mestra de vida, nos ensinou que “os sonhos são para serem realizados, não importa a idade”, tendo publicado seu primeiro livro aos 70 anos e o segundo pouco depois.

Foto: Nazareth Reales

Durante três dias, batemos de porta em porta oferecendo nossos produtos artesanais e serviços… e nada. A falta de recursos nos obrigou a partir sem poder acessar os atrativos tão divulgados da região. Sem dúvida nossa decepção foi enorme, porque Lençóis era o destino mais desejado do nosso mapa de viagem. Não compreendemos o porque de tanta indiferença com uma família de ciclista viajante, mas chegamos a conclusão que gestores públicos de outras cidades, como por exemplo, Santo Antônio de Jesus, BA, nos ofereceram generosidade suficiente para suprir a necessidade dos gestores públicos de Lençóis, cidade com potencial turístico bem maior.

Assista aqui esse capítulo:

Na saída, como mais uma lembrança para levar, aconteceu um contratempo mecânico: a corrente da bicicleta de Andrés arrebentou no meio de uma subida. Depois de 15 meses de viagem, sabíamos que a transmissão estava no limite de sua vida útil. Trocar exige tempo, peças e orçamento, algo que nos lembra que, para uma família ciclo viajante como a nossa, as prioridades nem sempre são as mesmas que as de um turista tradicional: investimos mais em manter nossa “casa sobre rodas” do que em pousadas. No entanto, cada gesto de nobresa, cada generosidade, registramos com muito carinho em textos e vídeos.

Restaurante de Louro, à beira do rio Mucugezinho Foto: Acervo Pessoal

Após 20 quilômetros de pedal, sol e montanha, chegamos ao Restaurante de Louro, à beira do rio Mucugezinho. Lá, o dono nos permitiu acampar e aproveitar o lugar, e Ricardo, um funcionário, fez questão de que nossa experiência fosse inesquecível. O rio oferece diversas áreas para banho, com poços de grande profundidade, como o Vale das Piscinas, o Poço Pato e o Poço Diabo e, para nossa surpresa, o acesso é totalmente gratuito.

Poço do Diabo, Mucugesinho – Foto: Nazareth Reales

Foi um lembrete de que a magia da viagem está nas pessoas que escolhem compartilhar humanidade, e não no preço de uma entrada. Ensinamos ao nosso filho Thomas a aproveitar, cuidar e valorizar esses lugares, que não são apenas negócios: são o lar de milhares de espécies e a própria vida.

Lençóis, com todo o seu potencial, tem uma oportunidade que não deveria desperdiçar: abrir espaço para que o turismo também seja uma ponte de humanidade, e não apenas uma transação econômica. Porque, no fim, a experiência mais valiosa para um visitante nem sempre se vende… às vezes, se compartilha.

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