Moradores cobram respeito à Convenção 169, mais acesso à informação e participação efetiva nas decisões que afetam a Ilha de Itaparica
Por Gilsimara Cardoso

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
No último sábado, 26 de julho, na Escola Modelo, em Itaparica, 51 pessoas participaram de mais uma etapa das consultas livres sobre a construção da Ponte Salvador-Itaparica. A reunião, promovida pelo Consórcio responsável pela obra em parceria com a Sepromi (Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais), busca apresentar informações sobre o projeto e ouvir a comunidade. No entanto, participantes voltaram a criticar a falta de diálogo, a baixa divulgação e a ausência de respostas às dúvidas mais urgentes.

Rildo Gomes na Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
A estrutura técnica da apresentação melhorou em relação às consultas anteriores, com o uso de telão de LED, som de qualidade, interprete de libras e linguagem mais compreensível conduzida pelo representante do Consórcio Salvador Itaparica, Rildo Gomes. Ainda assim, moradores afirmaram que os esclarecimentos não foram suficientes e muitos saíram com as mesmas dúvidas.
Na consulta anterior, realizada na comunidade de Cacha Pregos, em Vera Cruz, os participantes haviam solicitado que os representantes do governo e do consórcio permanecessem até o final do evento para responder às perguntas. Desta vez, novamente não foi possível. Segundo os organizadores, Rildo teve um imprevisto e não conseguiu retornar ao local após a formação dos grupos.

Katia Silene na Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Katia Silene, marisqueira e moradora do bairro Alto das Pombas, Itaparica, disse que só soube da reunião um dia antes, por meio do moto de som, “muita gente não está sabendo porque o anúncio foi feito só nas ruas principais. Aqui tem muito pescador e marisqueira, e veio pouca gente. A consulta está boa, mas, na minha opinião, não está mostrando os impactos. Acredito que a ponte não será boa pra gente, vai ser boa para os empresários e para o governo.” Ressalta katia.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Além disso, os organizadores das consultas afirmaram que a responsabilidade pela divulgação dos encontros tem sido repassada para lideranças de colônias, o que limita o alcance da divulgação das reuniões (consultas livres).
“Se a consulta fosse no domingo e com divulgação do moto som com mais antecedência teria mais gente. Um dia antes, ninguém se organiza. O povo precisa se preparar para participar”, alertou Roberval Figueiredo, da Associação de Pescadores e Sócio-Cultural de Itaparica (A-152).

Roberval Figueiredo (de camisa verde ) na Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Roberval também afirmou ter recebido o material informativo para divulgação na Colônia A-152 durante a reunião informativa dia 04 de julho, “sim, eu recebi esse material e distribuir para os pescadores e marisqueiras “, reafirma Roberval.
O Jornal Atualize recebeu o release dessa consulta apenas um dia antes do evento e solicitou, no local, o calendário das próximas reuniões para poder divulgar amplamente, junto com outros veículos da Rede de Comunicadores da Ilha (RECOMII). A resposta dos representantes do governo foi que não tinham autorização para informar as datas futuras.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Apesar de se tratar da maior obra de infraestrutura da Bahia e da América Latina, representantes de órgãos públicos como Sepromi, Secretaria de Infraestrutura – Seinfra-, Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos-Inema- e até mesmo da própria consultoria Temis se recusaram a conceder entrevistas, alegando falta de autorização. Tal postura fere os princípios da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que garante a qualquer cidadão o direito de obter informações de interesse público. A ausência de diálogo com a comunicação local, agravada pela omissão da Secretaria de Comunicação Social- Secom- em disponibilizar um profissional para prestar esclarecimentos à imprensa, evidencia um desrespeito ao direito à informação e à transparência, princípios fundamentais em uma sociedade democrática. Não se pode aceitar que, diante de um empreendimento dessa magnitude, a imprensa seja mantida à margem, recebendo apenas releases padronizados e sem checagem, sem levar em consideração os impactos regionais e a realidade de cada consulta. A comunicação comunitária local acompanha as consultas públicas, está disponível para divulgar informações previamente e tem compromisso com a escuta da população. Ignorá-la é também deslegitimar a participação social no debate sobre o futuro da Ilha de Itaparica e do Recôncavo Baiano.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Durante o encontro, foram feitas diversas reivindicações pela comunidade, dentre elas, a construção de hospital com UTI e hemodiálise, investimentos em segurança pública, transporte coletivo de qualidade e educação com foco em meio ambiente e gênero. Houve também preocupação com a preservação dos patrimônios históricos da ilha e com os impactos ambientais durante e após a construção da ponte.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
A ativista Ludimilla Teixeira fez diversas intervenções durante a apresentação, chamando atenção para a condução do processo e para a ausência de técnicos ambientais.
“O que está sendo colocado nas consultas é que o progresso só virá com a ponte. hospital, universidade, escola de qualidade… isso não pode ser moeda de troca. O que deveria estar sendo discutido são os impactos“, ressalta Ludimilla, ela questionou também a ausência de um engenheiro ambiental que não fizesse parte do Consórcio da Ponte, “os impactos ambientais devem ser explicados por um engenheiro ambiental que não faça parte da equipe técnica do consórcio.” Justificou.
As interrupções causaram desconforto entre alguns participantes, e parte do público se retirou em protesto. Ludimilla, no entanto, manteve a postura, “interrompi porque o que está sendo feito aqui é uma tentativa de maquiar os efeitos dessa obra sobre nossas vidas,” concluiu.
O Jornal Atualize checou, Rildo Gomes tem pós-graduação em Engenharia, Gestão e Planejamento Ambiental pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Ele é graduado em Engenharia Ambiental e Agronomia pela Universidade Federal da Bahia.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Marisqueiras relataram dificuldades no entendimento sobre o projeto, “ algumas partes eu estou entendo, algumas estou confusa ainda, ali no grupo que eu pedi de melhorias foi o hospital,” relata Lucélia dos Santos. A incompreensão é justificável pela quantidade de informações apresentadas no curto período de consulta. A ausência de representantes da Seinfra e do Inema para esclarecer dúvidas também foi sentida. Ambos estiveram presentes na plateia, apenas como observadores, sem participação ativa nas discussões.

Roquelina Silva na Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
A marisqueira Roquelina Silva, pertence a Colônia Z -12, solicitou mais uma consulta, de acordo com ela, foi difícil compreender principalmente por ter havido interrupções durante a apresentação, uma das dúvidas dela é sobre o período em que a pesca ficará suspensa,” meu maior medo é o tempo que a gente vai ficar parada, eu gostaria de saber quanto tempo a gente vai ficar parada sem pescar? vai reembolsar? ,” pergunta Roquelina.

Consulta Livre em Itaparica – Foto: Gilsimara Cardoso
Ao fim da reunião, ficou claro que as comunidades tradicionais da ilha não rejeitam o debate sobre o futuro da região, mas exigem ser ouvidas com seriedade, transparência e respeito. Para muitos, a ponte ainda é vista não como um avanço inevitável, mas como um projeto que irá comprometer os modos de vida, a cultura e os direitos de quem sempre viveu e sustentou-se das águas e da terra da Ilha de Itaparica.

Foto: Gilsimara Cardoso
Em paralelo à consulta oficial, lideranças religiosas e representantes de comunidades tradicionais se reuniram em Itaparica para discutir de forma autônoma os protocolos da consulta. A reunião teve como foco o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT-, que garante o direito à consulta prévia, livre e informada a povos tradicionais.
Para Olavo de Souza, Dr. em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo -USP, as consultas na Ilha não passam de formalidades burocráticas, ” o modelo de consulta adotado pelo governo que se resume a reuniões únicas com apresentações prontas e formatadas, onde apenas os representantes do empreendimento e do governo falam a favor da obra, sem dar tempo ou espaço efetivo para as comunidades tradicionais da Ilha de Itaparica processarem as informações e se posicionarem coletivamente, claramente descumpre os princípios básicos da Convenção 169 da OIT. Esse formato de consulta rápida e unilateral não pode ser considerado legítimo, pois falha em atender aos requisitos fundamentais de ser livre, informado e realizado de boa-fé.” Explica Olavo.

Foto: Gilsimara Cardoso
Olavo também alertou sobre a dinâmica da consulta, “quando apenas um lado – no caso, os proponentes da obra – tem voz privilegiada, enquanto a comunidade é relegada ao papel de plateia, cria-se uma assimetria de poder que inviabiliza qualquer possibilidade de participação real.O caráter informado da consulta também fica comprometido nesse modelo. As informações técnicas sobre o empreendimento são apresentadas de forma unilateral, sem a devida contextualização cultural ou linguagem acessível. Não há espaço para perguntas aprofundadas, nem para a apresentação de estudos independentes que possam contrapor a versão oficial. Os impactos reais sobre o território, a cultura e os modos de vida tradicionais acabam sendo minimizados ou omitidos. A Convenção exige que as comunidades tenham pleno acesso a todas as informações relevantes, o que claramente não ocorre quando tudo se resume a uma apresentação técnica feita em um único dia.“
Ele explica também sobre a relação das comunidades da ilha com o território, “na Ilha de Itaparica, onde as comunidades tradicionais mantêm uma relação profunda e ancestral com o território, esse tipo de consulta pode representar uma grave violação de direitos. A construção de uma ponte traz impactos irreversíveis – desde a especulação imobiliária até a transformação dos modos de vida tradicionais – que exigem um processo consultivo robusto e respeitoso. O modelo adotado até aqui, ao reduzir a participação comunitária a uma formalidade , não apenas descumpre a Convenção 169 porque implementa um modelo único de consulta, que tem se reproduzido igual em todas as reuniões, sem levar em conta as especificidades culturais de cada segmento.”

Foto: Gilsimara Cardoso
A líder religiosa Eliana Falayó também fez duras críticas à forma como o Estado da Bahia tem conduzido o processo, “eu entendo que esse documento é um tratado internacional resultante de uma convergência de vários representantes de países, na qual o Brasil também aceita a condição que está posta na Convenção 169. E uma instância menor que essa cúpula, no caso o Estado da Bahia, passa por cima atropelando o que está posto e diz que está REGULAMENTADA? Que loucura é essa?
E completou, “a pergunta que fica é: quem vai parar essas pessoas? Será que o Brasil perdeu sua capacidade de cumprir suas próprias leis em defesa dos direitos humanos?”
O Jornal Atualize segue acompanhando.