Entre desconfortos, estratégias e resistência, mulheres negras da Bahia revelam porque a Marcha Global é mais que um ato, é um chamado à transformação.
Por Gilsimara Cardoso

Foto: Lívia Ferreira
A Marcha Global das Mulheres Negras começa muito antes de Brasília. Ela nasce nos ônibus lotados, nos corpos cansados e nos sonhos que teimam em seguir adiante. Como mulher negra, escrevo de dentro desse movimento, atravessada por ele.
Não observo à distância, caminho junto, compartilho as dores, os atrasos, a esperança e a urgência que moldam cada passo. Essa marcha se levanta da resistência cotidiana, da resiliência que nos empurra para frente e da convicção de que o bem viver não pode continuar confinada à promessa do futuro.

A caminho da Marcha – Foto: Gilsimara Cardoso
Na longa estrada entre Salvador e Brasília, compreendi de novo como o óbvio ainda precisa ser reivindicado: representação política, dignidade, condições mínimas para existir e participar. A cada parada, as tímidas apresentações iniciais se transformaram em conversas profundas. Mulheres que desconheciam até os nomes umas das outras passaram a dividir inquietações que nos atravessam coletivamente.
As falas se cruzaram como fios que sustentam uma trama antiga
Por que ainda somos minoria nos espaços de decisão? Como ainda continuamos sub-representadas no legislativo e no executivo das nossas próprias cidades? Por que a busca por reparação insiste em esbarrar em muros erguidos por quem deveria removê-los?

Marcha Global das Mulheres Negras em Brasília – Foto: Gilsimara Cardoso
Mesmo quando o espírito coletivo prevalece, cada movimento carrega suas tensões internas. Em muitos deles, partidos tentam capturar pautas que não lhes pertencem, transformando causas históricas em moeda de disputa. Apesar disso, seguimos. Seguimos porque a luta vai além de qualquer fronteira partidária; é uma luta pela vida, pela memória e pelo futuro.

Marcha Global das Mulheres Negras reuniu 300 mil vozes em Brasília – Foto: Gilsimara Cardoso
E nesta última terça-feira, 25 de novembro de 2025, essa caminhada alcançou um dos seus pontos mais emblemáticos. A Marcha Global das Mulheres Negras reuniu 300 mil vozes em Brasília, todas convocadas pelo mesmo chamado: “Por Reparação e Bem Viver.” Não apenas uma marcha, mas um marco que renova a certeza de que, enquanto caminharmos juntas, seremos como uma grande rocha.
A viagem como espelho das desigualdades
Vou relatar em particular a participação das mulheres da Ilha de Itaparica. A marcha começou antes mesmo de sair de Vera Cruz. Em apenas dois dias, mulheres que já carregam tantas jornadas precisaram mobilizar a comunidade para arrecadar R$ 1.200, valor destinado à alimentação do grupo durante as 60 horas de deslocamento e às passagens entre Salvador e a Ilha. Cada contribuição chegava como um gesto de confiança no caminho que elas escolheram trilhar.

Marilucia Barbosa , na Marcha Global das Mulheres Negras em Brasília – Foto: Gilsimara Cardoso
A primeira refeição da viagem, preparada por Marilucia Barbosa, nasceu do apoio de comerciantes locais e de lideranças políticas. Foi partilhada ali mesmo, em movimento, com a simplicidade de quem divide sustento e coragem. A comunhão lembrava que grandes mudanças, muitas vezes, se constroem com pequenas solidariedades.

08 mulheres de Vera Cruz a caminho de Brasília – Foto: Lívia Ferreira
A maior mobilização de mulheres negras da história do país dependeu, na prática, de doações e esforço coletivo. Sem tempo para formalidades institucionais, as participantes correram para assegurar um lugar na comitiva, articulando apoio por mensagens e ligações. Sabiam que cada órgão público segue protocolos, mas também que, quando há disposição, a ajuda acontece. E, por isso, a gratidão pelo que chegou foi imensa, mesmo acompanhada da compreensão de que o grupo merecia mais.
Resiliência e providência

Gilsimara Cardoso, Luciana Barreto e Marilucia Barbosa a caminho da Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Lívia Ferreira
Durante o percurso, o desconforto físico marcou cada quilômetro. Nas poltronas estreitas, era difícil até esticar as pernas. Dividir o pequeno espaço com outra passageira transformou-se num exercício constante de paciência e partilha.
Mesmo diante dos obstáculos, estávamos determinadas no propósito e o sorriso não nos faltou. Quando, finalmente, surgiu a chance de um banho, outro obstáculo apareceu. O chuveiro pago não funcionava. A fila ultrapassava 50 mulheres, apenas um chuveiro tinha sido liberado. O gerente, sem condições de solucionar o problema, tomou uma decisão brusca. Suspendeu a venda dos banhos. Um gesto que atingiu a todas, como se o trajeto não tivesse desafios suficientes.

Luciana Barreto, na Marcha Global das Mulheres Negras em Brasília – Foto: Gilsimara Cardoso
A resiliência apareceu justamente nesse momento. Aline Oliveira Santos, 38, encontrou um balde que servia como lixeira dentro do ônibus, lavou o recipiente com cuidado e transformou o improviso em solução. Luciana Barreto auxiliou constantemente na logística. Uma a uma, todas conseguimos tomar banho. Foi ali, naquele gesto simples e coletivo, que entendemos com ainda mais clareza porque estávamos na marcha.
Seguimos em busca de reparação e bem viver para que situações como essa não façam mais parte da realidade de nenhuma mulher negra.
Entre cansaço, improviso e resistência, avançamos rumo a um encontro histórico, levando conosco não apenas marcas, mas a certeza de que cada passo, cada esforço e cada renúncia faziam parte de algo maior.
A pluralidade da delegação mostra a complexidade das lutas negras no Brasil.

Luana Vaneska , ( a primeira da direita para esquerda) na Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Acervo Pessoal
Luana Vaneska Rodrigues, coordenadora do Fórum TT e ativista do Fonatrans, celebrou a presença de mulheres trans na marcha. “A marcha foi exatamente como eu imaginava, porque nós, articulamos a vinda de meninas de vários estados. Estar ali mostrou a importância desse movimento. Os corpos de mulheres trans e travestis são corpos lidos e reconhecidos como mulheres. Temos os mesmos direitos, e essa marcha também nos inclui quando fala de reparação histórica”. Ressaltou.

Luana Vaneska , ( a primeira da direita para esquerda) na Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Acervo Pessoal
Luana relembra que a desigualdade ainda pesa de forma profunda. Mulheres trans e travestis seguem como a menor parcela inserida no mercado de trabalho, nas universidades e nas estruturas formais da sociedade, uma exclusão que se repete e se reforça ao longo dos anos. Por isso, para ela estar na marcha carregava um significado ainda maior. “Superou minhas expectativas. Marchar ao lado de tantas outras, quero que, na próxima marcha, venham ainda mais mulheres trans e travestis para fortalecer esse movimento que também é nosso.” Relata Luana.

Dete Silva, na Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Acervo Pessoal
Já para Dete Silva, 70, associada da Instituição Apito de Camaçari, enxergou na marcha um compromisso histórico.
“Apesar do esforço e do trabalho para conseguir estar na marcha, valeu a pena a participação. A gente tem que continuar lutando, porque o que a gente tem hoje foram conquistas de outras mulheres no passado. Precisamos conseguir melhorias para a nova geração.” Afirma Dete.
Quando a cobertura jornalística expõe o racismo estrutural dentro de um ato pensado para todas.

Gilsimara Cardoso, na cobertura da Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Ana Keise
Durante a cobertura do evento, enfrentei dificuldades que ultrapassaram questões logísticas. Mesmo identificada com o crachá do jornal, aguardei por mais de uma hora para acessar o trio do Nordeste, enquanto outras profissionais, todas de pele clara, eram liberadas sem impedimentos. Isso consequentemente atrasou todo o meu trabalho, e por isso, não tenho imagens melhores.

Liberação para subir no Trio do Nordeste – Foto: Gilsimara Cardoso
Questionei se o turbante que eu usava poderia estar influenciando a abordagem e, ao retirá-lo, nada mudou. A autorização só veio após eu sinalizar que abriria uma denúncia. Ao confrontar a equipe responsável, ouvi que não havia sido intencional. Ainda assim, o episódio expôs, de forma concreta, como o racismo estrutural está presente em espaços que deveriam ser coletivos e inclusivos, inclusive dentro da própria Marcha.

Alojamento da Marcha Global de Mulheres Negras – Foto: Gilsimara Cardoso
A situação se repetiu, de outra forma, na Granja do Torto. Nenhuma de nós esperava um alojamento com condições tão limitadas, e o impacto foi ainda maior ao perceber que aquele espaço costuma abrigar animais, não pessoas. Embora reconheçamos o esforço da coordenação da Marcha em buscar algo melhor, a sensação de desrespeito foi inevitável diante de um local que não refletia a dignidade que um público tão amplo e diverso merecia.
O que foi destinado para acolher um público tão grande, no entanto, foi aquele espaço, sem opção além de aceitar ou voltar para casa. Esses episódios reforçam a urgência de políticas reais de reparação e de um compromisso efetivo com o bem viver, para que mulheres negras, especialmente comunicadoras, não sigam enfrentando barreiras que silenciam suas presenças e seus trabalhos.
A participação no Palácio do Congresso Nacional

Zene Carvalho, no Palácio do Congresso Nacional – Foto: Acervo Pessoal
Entre as mulheres de axé, a artista plástica e yakekerê Zene Carvalho, do Terreiro Ilê Axé Oyaketemi de Lauro de Freitas, viveu um misto de orgulho e desconforto. Por um lado, a presença delas despertou curiosidade e destaque. Por outro, revelou distanciamento. “Lá dentro as mulheres de axé foram recebidas como algo extraordinário, não era comum a mulher de axé está ali. Fomos fotografadas, mas não tivemos fala. Não me senti representada, a forma como foi feita a Assembleia deixou a desejar, tinha espaço para muitas mulheres lá. Mas apenas metade do espaço foi ocupado. A Sessão Especial abordou o feminicídio, ancestralidade e o pedido de reparação e bem viver para nós mulheres”. Destacou.

Aline Oliveira Santos, no Palácio do Congresso Nacional – Foto: Acervo Pessoal
Entre as vozes que ecoaram durante a marcha, Aline Oliveira Santos, 38, descreveu um dos momentos mais marcantes da trajetória dela em Brasília. Para ela, estar no Palácio do Congresso Nacional ultrapassou qualquer expectativa. “Para mim foi um sonho estar no Palácio do Congresso Nacional, me sentir próxima de Xangô, o orixá da justiça. Estive no local que me fez sentir empoderada, eu nunca imaginei estar lá, um sentimento surreal. Apesar disso, eu acho que precisava ter mais falas de nós, mulheres negras, para de fato ter representatividade“. Aline relata emocionada.
União como estratégia e sobrevivência

Andreia Almeida, (da esquerda para direita) na Marcha Global das Mulheres Negras – Foto: Gilsimara Cardoso
A síntese mais potente surge na fala da vice-presidenta da Unegro, Andreia Almeida. Ela concentra, em poucas palavras, o que muitas mulheres expressaram ao longo da marcha. Além disso, a reflexão dela funciona como um eixo que costura as tensões, os avanços e o propósito coletivo do movimento.
A fala, na íntegra, reforça o que atravessa toda esta reportagem. “É importante a gente reavaliar. O momento foi histórico, foi único, mas a gente tem aí um caminho grande que precisa ser trilhado de forma unificada. Eu acho que não vai caber uma entidade ou outra a buscar gerar transformação de forma isolada. A gente sabe que o movimento social é isso. O movimento social é um movimento coletivo. A gente sabe que essas transformações, elas só são possíveis quando a gente coloca na pauta central a população negra. E aí partindo de nós, mulheres negras… vamos juntas, vamos caminhar, vamos gerar as transformações, porque quando a mulher preta se movimenta, ela movimenta toda a estrutura da sociedade. É isso que a gente veio fazer aqui em Brasília.” Ressalta Andreia.
Muito além do deslocamento

Concentração dos ônibus em Brasília – Foto: Gilsimara Cardoso
O caminho até Brasília não foi confortável, mas foi importante para nos fortalecermos. Teve resistência, criatividade e partilha. A chegada em Brasília foi desconfortável, cansadas após 30 horas de viagem, chegamos na Granja do Torto, e para nossa surpresa, o lugar era de fato uma granja.
Sabíamos que era um alojamento, acredito que a simbologia do lugar foi mais impactante do que o próprio desconforto, sinto vergonha ao escrever que dormimos no local que serve como estábulo. No entanto, me conforta saber que grandes resultados, requer grandes sacrifícios.

Foto: Lívia Ferreira
Cada mulher deixou casa, rotina e filhos para trás, acreditando que a causa merecia. Merecíamos, sim, outro tipo de estrutura. Ainda assim, encontramos no desgaste e na falta uma força coletiva que só cresce quando caminhamos juntas. E temos convicção que a coordenação da Marcha fez o impossível para que a nossa participação fosse possível.
A força vem da ancestralidade

Ekedji Sinha, na Marcha Global de Mulheres Negras- Foto: Gilsimara Cardoso
O que nos acalentou sem dúvida foi o encontro com outras grandes mulheres em busca do mesmo propósito. Em meio à mobilização, a líder religiosa da Ilha de Itaparica, Ekedji Sinha, destacou a força coletiva das mulheres e das tradições locais. Para ela, o momento simboliza união e retomada de caminhos históricos. “Nós estamos juntas com as mulheres, com o povo de Itaparica. Nós precisamos reconstruir essa caminhada ancestral”. Afirmou, reforçando o papel da ancestralidade como guia para as lutas atuais.
O poder da escrita

Marlone da Silva Pereira, no retorno da Marcha Global de Mulheres Negras- Foto: Gilsimara Cardoso
Durante o retorno para casa, a escritora Marlone da Silva protagonizou um lançamento inusitado ao apresentar o livro dela dentro do ônibus. Ela levou consigo o exemplar que recebeu os autógrafos de todas nós, símbolo da coletividade que inspira a obra.
No livro, Marlone aborda a valorização de mulheres pretas nos espaços de poder e compartilhou os desafios que enfrenta diariamente no serviço público onde ela trabalha. O livro provocou reflexões, inspirou estratégias, reforçou pedidos de reparação e fortaleceu a união coletiva entre nós.
Essa marcha começou muito antes de Brasília começou nas conversas, nas dificuldades, nos improvisos que nos uniram ainda na estrada. E, da mesma forma, ela não termina quando voltamos para casa. Continua quando olhamos para nossas cidades e percebemos o quanto ainda precisamos reparar. Continua quando entendemos que, mesmo atravessando cansaço e fragilidade, seguimos fortalecidas pelo propósito.

Foto: Lívia Ferreira
Reparação e bem viver não são ideologias. São direitos. E avançamos justamente para que deixem de habitar o plano das promessas e passem a existir de fato. Para quem imaginou que tudo se resumiria a um passeio ou a uma viagem tranquila até Brasília, o engano apareceu cedo. A marcha exigiu sacrifício, e cada sacrifício foi feito em nome do bem coletivo.
A nota de solidariedade

Foto: Lívia Ferreira
Em nota divulgada pela organização da Marcha das Mulheres Negras, o texto expressa respeito, admiração e solidariedade às participantes, reconhecendo os desafios enfrentados durante a mobilização. Segundo o documento. “Saudamos, respeitamos e acolhemos às tantas mobilizações realizadas por cada uma das companheiras Brasil afora. Sabemos dos cansaços, das noites perdidas, das longas horas de estradas, para chegarmos até Brasília com nossa força e coragem. Com profundo respeito, admiração e solidariedade a cada uma das 300 mil agentes da nossa história, nos solidarizamos diante de experiências difíceis vividas por algumas de nossas irmãs negras, fruto da estrutura do alojamento fornecido pela Granja do Torto, das chuvas intensas que resultaram em falta de energia e de água, e do acolhimento falho.”
Muito orgulho de todas vcs,em especial minha amada amiga trans Luana Valeska,muito orgulho de vc.
Eu Luana vaneska Rodrigues gratidão pelo carinho e acolhimento seguirmos aguerridas ..