Devoção e memória, a festa que une gerações na antiga Fazenda Parapatingas

Por Gilsimara Cardoso

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

Os cânticos da missa se espalhavam pelo vento, alcançando o pequeno riacho, um ponto raso do Rio São Simão, na antiga Fazenda Parapatingas. Aos poucos, o som atravessava o mato ralo e chegava aos visitantes vindos de Tairu, que se reuniram sob a sombra do velho tamarineiro. O tronco largo e as poucas folhas denunciavam o peso dos séculos, estima-se que a árvore tenha mais de trezentos anos.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Antigamente, a sombra do tamarineiro abrigava famílias inteiras. Devotos, barraqueiros e curiosos aproveitavam a festa não só para rezar, mas também para prosear, vender quitutes e descansar do sol escaldante que castigava o campo.
Florêncio Prazeres Lima (83), conhecido como Mestre, morador antigo da comunidade, lembra com precisão de cada detalhe.

A sombra era grande, tapava o sol do meio-dia. Dava até pra roncar de tão fresco que era. Se juntasse três homens, não abraçava o tamarineiro. Era bonito de se ver”. Relata, com o olhar distante de quem ainda escuta o burburinho das festas de outrora.

Simão César – Foto: Gilsimara Cardoso

Hoje, em 2025, o tamarineiro abriga poucos carros e alguns fiéis. O tempo diminuiu o tamanho da festa, mas não o da fé.

Neste contexto, a missa se prepara para começar, e entre os presentes está Simão César, que este ano celebra em nome da mãe, Dona Margarida.

Simão César, na Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Pra mim foi difícil voltar aqui. Essa festa lembra muito ela, a minha mãe se dedicava demais a essa Festa. Superei um tempo duro, e agora não vou mais deixar de vir. Agradeço à família Lima e à comunidade de Tairu por manterem comigo essa história viva.”

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

E assim começou mais uma fase da Festa de São Simão, no último dia 28 de outubro, uma tradição que atravessou séculos e continua ecoando entre o rio e o vento.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

A origem documentada

De acordo com o historiador Ubaldo Osório, a festa de São Simão foi instituída em 1746, na localidade de Pirapitingas (ou Parapatingas), então, parte do antigo Morgado de Manoel de Lima da Rocha Pitta e Argolo. Quando o comerciante de baleias Simão Brás trouxe de Portugal a imagem de São Simão, que logo conquistou a devoção dos moradores da fazenda.

Em 28 de outubro de 1746, data consagrada ao apóstolo, os fiéis celebraram a primeira missa em sua homenagem. A partir desse momento, a fé em São Simão ganhou força e atravessou os séculos. Permanecendo viva entre os descendentes das famílias que ali nasceram e cresceram.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Com o passar do tempo, a devoção a São Simão se entrelaçou à história da Família Lima, descendente direta do patriarca Clementino Lima, filho de Manoel de Lima da Rocha Pitta e Argolo, antigo senhor do morgado.

Mestre, Florêncio Prazeres Lima, memória viva de Tairu, é filho de Clementino e carrega o legado dessa linhagem que uniu fé, trabalho e tradição.

Durante os festejos, os devotos chegavam de várias comunidades vizinhas, Campinas, Tairu, Barra Grande, Conceição e outras. Cada grupo trazia a própria refeição para partilhar. Pescadores, marisqueiras, saveiristas, tiradores de coco e catadores de piaçava reforçavam, com presença e alegria, o espírito comunitário da celebração.

Dona Margarida, em memória, na Festa de São Simão, 28 de outubro de 2016, em Parapatingas – Foto: Carlos Maguari

Dona Margarida ( em memória) herdou a tradição dos pais dela, que por sua vez, herdou também de outros antepassados.

Maria Solange Alves (89), conhecida como Dona Solange, irmã caçula de Dona Margarida, garante que a história verdadeira é essa, a do historiador Ubaldo Osório.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

O santo que veio das águas

Mas, para a comunidade de Tairu, a história não está apenas nos livros.
Há quem diga que a imagem não veio de Portugal, veio do rio.

Segundo a tradição oral, a imagem de São Simão apareceu nas águas do rio que hoje leva o nome do santo. O achado foi interpretado como um sinal divino. Desde então, aquele trecho passou a ser considerado sagrado. Lugar de promessas, banhos e agradecimentos.

Dona Lêda, na Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Lêda Lima, matriarca conhecida como Dona Lêda, relata com emoção a história oral que foi passada a ela desde criança.

O santo foi achado no poço que tinha no rio de água clara, tinha pedrinhas no fundo. Por isso, o nome do rio é Rio São Simão, as águas são sagradas, muita gente tomava banho para se curar e levava para casa para fazer remédio. ” Afirma Lêda.

De voz em voz, essa narrativa atravessou gerações. E, mesmo sem provas escritas, permanece como verdade simbólica e espiritual, um elo entre a fé e a natureza que molda o sentimento coletivo de Tairu.

Imagem original de São Simão, Casa Pia, Salvador – Foto: Gilsimara Cardoso

A Partida da Imagem para Salvador

A imagem original de São Simão, com pouco mais de 1,60 metro de altura, permanece longe de Vera Cruz. Atualmente, repousa na Casa Pia, situada na Igreja de São Joaquim, em Salvador.

Há cerca de setenta anos, a comunidade assistiu com tristeza à partida do Santo, pouco depois do incêndio que destruiu a antiga capela de Parapatingas.

De acordo com relatos da comunidade, naquele período, os responsáveis prometeram restaurar a imagem e devolvê-la à comunidade, porém, esse retorno nunca se concretizou.

Mestre, Florêncio Prazeres Lima – Foto: Gilsimara Cardoso

Mestre, ainda guarda na memória o dia da partida e o descreve como uma despedida difícil. “Eu era menino quando vi a imagem sendo levada no saveiro Aliança, saindo do Pedrão. O povo ficou na beira da praia chorando. Parecia que a fé tava indo embora junto com o Santo”, lembra.

Casa Pia, Salvador – Foto: Gilsimara Cardoso

Hoje, Dona Solange mantém o elo com o santo. Ela é voluntária na biblioteca da Casa Pia e convive diariamente com a imagem. Preservando o vínculo afetivo que resiste ao tempo e à distância.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

A festa hoje

Mesmo sem a imagem original, a festa continua. Sob a sombra do tamarineiro e entre as ruínas da capela de 1829, as famílias se reencontram, compartilham histórias, rezam, cantam e saboreiam a tradicional feijoada que Dona Lêda prepara com devoção.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Enquanto o som dos cânticos se mistura ao aroma da comida, o clima de união toma conta do lugar.

No altar improvisado, uma imagem menor, trazida de Barra Grande, mantém viva a lembrança do santo que um dia ocupou o altar da antiga capela.

Simão César, na Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

Durante a celebração, Simão César emocionou a comunidade ao falar diante das ruínas, reforçando o espírito de pertencimento que atravessa gerações.

“Em primeiro lugar, eu quero agradecer a Deus. Aqui existe união e família, isso é família. Aqui eu me sinto honrado, considerado, respeitado e amado por todos. Eu me sinto feliz! Quero agradecer à minha tia Solange, a minha mãe, a Val da Caçamba, a tia Lêda, a tia Júlia… e à minha família Lima, que está aqui hoje.” Discursa.

Imagem original de São Simão, Casa Pia, Salvador – Foto: Gilsimara Cardoso

Quem deseja ver a imagem original de São Simão precisa agendar uma visita à Casa Pia, na Igreja de São Joaquim, em Salvador, onde a escultura permanece sob os cuidados da instituição.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

E Assim, ano após ano, a celebração reafirma o que mantém viva a fé em Tairu, a força da oralidade, o valor da ancestralidade e o profundo sentimento de pertencimento que une famílias e gerações em torno de São Simão.

Matriarcas de Tairu, na Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Gilsimara Cardoso

Entre o documento e a devoção

A história de São Simão em Tairu se sustenta entre dois tempos, o da escrita e o da fala.
De um lado está a memória histórica, que os livros e registros preservam, de outro, a memória devocional, que o coração dos moradores cultiva e renova a cada geração.

Festa de São Simão, 28 de outubro de 2025, em Parapatingas – Foto: Oni Sampaio

Ambas caminham lado a lado. Nenhuma sobrepõe a outra, pois cada uma guarda uma verdade própria.
E juntas, fortalecem o enredo de um povo que, mesmo sem o santo em casa, continua alimentando a fé e mantendo viva a presença de São Simão.

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